Pode o ateu ser bom?
Religiosos comumente perguntam a ateus como eles podem ser bons se não acreditam em Deus. Muita gente acredita que ateus são, intrinsecamente, pessoas más. E daí a pergunta: pode o ateu ser bom?
Acredita-se que a moral e a religião estão intrinsecamente juntas. Aceita-se aqui “moral” como um conjunto de regras de conduta consideradas como válidas para a vida em sociedade. Nas tradições das principais religiões, incluindo o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, Deus é concebido como um legislador que estabeleceu regras que devem ser obedecidas por todos. Podemos escolher se vamos obedecer ou não aos seus mandamentos (livre arbítrio), mas segundo seu conjunto de regras teremos que seguir as leis divinas se quisermos ser considerados bons. Esta concepção foi elaborada por teólogos e transformada numa teoria sobre a natureza do bem e do mal conhecida como “teoria dos mandamentos divinos” (RACHELS, p. 80). A teoria afirma, essencialmente, que "moralmente certo" significa "ordenado por Deus" e "moralmente errado" significa "proibido por Deus". A teoria, claro, é questionável e Sócrates, antes do cristianismo, perguntava se um comportamento é correto porque os deuses o ordenam ou os deuses o ordenam porque é correto .
A teoria procura dar objetividade à escolha entre o que se considera bem e mal, uma vez que essa escolha foi feita por um ente superior. É claro que se poderia questionar a própria veracidade da forma de passagem de Deus para os homens de tais valores, geralmente feita através de algum livro sagrado, que se auto proclama detentor de autoridade absoluta.
É compreensível que se pense vir a moral diretamente de Deus e que a pessoa que não crê em sua existência não pode ou não consegue atuar dentro da moralidade, uma vez que há uma apropriação p doutrina das religiões da definição, por parte de Deus, do comportamento moralmente aceitável. Como alguém que sequer acredita em Deus poderia seguir essa diretriz?
Porém, o conceito do que deve ser bom ou mal não é propriedade da doutrina religiosa. Kant, por exemplo, retirou Deus da equação relacionada à necessidade de ser bom, optando pelo “dever” ser bom. O imperativo categórico de Kant incita a agir somente segundo a máxima tal que possamos ao mesmo tempo querer que se torne lei universal, ou seja, não importa de que lado da situação você esteja, o bem continua a ser o bem e o mal a ser o mal. E deve-se optar pelo bem pelo dever, e não em função de Deus (apesar de ter sido o próprio Kant um religioso), mas em função de uma moral de fonte não religiosa.
Einstein disse que do ponto de vista da vida cotidiana, o homem está aqui na Terra pelo bem de outros homens, principalmente daqueles que nos são caros. É uma boa razão para ser bom, sem levar em conta a religiosidade. E disse, ainda, "se as pessoas são boas só porque temem a punição, e esperam a recompensa, então nós somos mesmo uns pobres coitados" (citado por DAWKINS, p. 238).
Há até mesmo uma razão de auto-preservação, completamente alijada de fatores religiosos, para sermos bons com nosso semelhante. Os animais e plantas utilizam a simbiose[1], que mostra ser o comportamento altruísta bom, em termos darwinistas, e funciona para os seres humanos. Há mesmo uma explicação dawiniana para a realização do bem, pois a sobrevivência dos genes depende da associação de semelhantes, uma vez que trabalhar juntos é melhor do que trabalhar sozinho.
O altruísmo é claramente um comportamento evolutivo. Além disso, da mesma forma como a vida não tem seu início de repente, num único ponto determinado da história, a cultura e a moral também não, pois se desenvolveram ao longo das eras. A moral evoluiu lentamente, em pequenos grupos, à medida que os indivíduos cooperavam uns com os outros para a satisfação de suas necessidades. Não nos foi dada de repente por algum messias que disse, de repente, “aqui estão os princípios morais que devem seguir!”. A moralidade, de fato, é mais antiga que a religião.
Estudo de Hauser e Singer (apud DAWKINS, p. 328), colocando situações nas quais as pessoas devem fazer escolhas morais relativas à salvação de vidas humanas usando outras vidas humanas (por exemplo: é justo sacrificar-se um inocente para salvar 5 pessoas?), demonstram que não há diferença estatisticamente significativa entre ateus e crentes religiosos na elaboração de juízos morais, comprovando que não precisamos de Deus para sermos bons — ou maus.
Muitos crentes veem dificuldade na possibilidade de que o ateu possa ter, inclusive, esperança, na medida em que consideram que crer em Deus lhes dá a segurança de acreditar no triunfo da vida sobre a morte e da justiça sobre a injustiça. Mas deve-se lembrar que o ateu não faz o bem para evitar o inferno ou por receio de ser punido por uma força superior, mas sim porque acredita que deva abster-se do mal e praticar o bem. É sua motivação ética, e não uma razão inculcada pelo medo ou reverência.
Se o único motivo para que alguém seja bom é obter a aprovação e a recompensa de Deus, ou evitar a desaprovação dele e a consequente punição, não se trata de moralidade, mas sim de adulação ou chantagem. Se você acha que, na ausência de Deus (na suposição de que se prove cabalmente que ele não existe), cometeria roubos, estupros e assassinatos, revela-se, então, uma pessoa desprezível e imoral, sob qualquer conjunto de valores.
Por acaso alguém acha crível que, por perder a fé, de um dia para o outro, uma pessoa passa a ser má, a trair os amigos e furtar, assassinar ou estuprar? É claro que não. Não é o fato de ter fé em Deus que faz as pessoas serem boas. É aceitar como válidos valores como a honestidade, a urbanidade, sejam eles repassados a você por seus amigos, pais, ou que você mesmo tenha acrescentado à sua consciência, sejam esses valores compartilhados pela doutrina das religiões ou não. Como disse kant, a moral é autônoma e a religião não detém o monopólio da defesa da moral, apesar de historicamente ter sido importante nesse aspecto.
Crentes também dizem que o ser humano é mal por natureza e se não teme, não respeita. É um argumento falho, uma vez que a motivação para ser bom pode ser de preservação, aceitação do grupo, a vontade de ser eticamente correto, entre outras, e não o temor, que pode servir como motivaçãopara alguns, mas não necessariamente para todos.
Não há problema, inclusive, no fato de o ateu seguir em sua vida cotidiana valores considerados judaico-cristãos, como ajudar ao próximo, ser bom com sua família, além de outros, pois não são “propriedade” dos crentes. O ateu não precisa e não deve renunciar aos valores sociais e culturais éticos de que estão recheadas as doutrinas religiosas ou mesmo renegar a importância das religiões na história e, por conseguinte, do fator educacional das religiões em relação a esses bons valores. Muitos ateus possuem toda sua formação dentro de religiões, e não precisam abandonar seu aprendizado no que diz respeito à melhor maneira de se viver em sociedade porque deixaram de acreditar no sagrado. Como disse Conte-sponville, os valores transmitidos durante séculos pelas religiões não precisam de Deus para subsistir (COMTE-SPONVILLE, p. 29). A religião não inventou a moralidade, e nem ao menos a moralidade precisa da religião para se desenvolver.
Parafraseando Isaac Asimov, “parece-me um insulto aos seres humanos insinuar que só um sistema de recompensas e punições pode fazer de você um ser humano decente” (apud SHERMER, 1986, p. 2).
COMTE-SPONVILLE. André. O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
DAWKINS, RICHARD. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. — São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LOFTUS, JOHN W. What motivates an atheist to be a good person? Disponível em: http://debunkingchristianity.blogspot.com/2006/01/what-motivates-atheist-to-be-good.html. Acesso em: 20 de janeiro de 2009.
RACHELS, JAMES. Elementos de Filosofia Moral. Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2004.
SHERMER, MICHAEL. A esfinge secular - O Enigma da Ética sem Religião. Publicado originalmente em Skeptic, vol. 4, n.º 2, 1996, pp. 78-87. Tradução de Rodrigo Farias. Disponível em: http://d.scribd.com/docs/2hr5e50psqaleqqum5qj.pdf. Acesso em: 15 de fevereiro de 2009.
SHERMER, MICHAEL. The Science of Good and Evil. New York: Henry Holt and Company, 2004.
[1] Simbiose é uma relação mutuamente vantajosa entre dois ou mais organismos vivos de espécies diferentes. Na relação simbiótica, os organismos agem em conjunto para proveito mútuo.
Pode o ateu ser bom?
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
excelente san!!! falou tdo, religiao nao detem a etica e a justiça, o negocio é ter liberdade pra ser e viver com dignidade e nao em funçao de algo "superior" q dizem existir. abraço!!!
Postar um comentário